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quinta-feira, junho 29, 2006
Continuando com as tenebrosas lembranças do Jardim
O Jardim é uma sociedade em miniatura, donde aprendemos a sofrer tudo o que sofreremos na nossa vida adulta. A rejeição, a inadaptação, o abandono, a crueldade das outras pessoas. A única diferença com a vida adulta é que podemos beber para esquecer. O resto é igual. Os padecimentos são exatamente os mesmos. A Paulinha, com sua irritante rosto de bochechas rosadas, representou para mim o primeiro contato com uma sociedade cruel e intolerante; o abuso do mais forte sobre o mais fraco; a vitória da força sobre a razão, a violência sobre a sensibilidade, o sexo sobre o amor. Era uma menina que me dobrava em tamanho, roubava meu lanche, colava chiclete no meu cabelo, iniciava todo tipo de coros depreciativos respeito a meus dentes (eu era dentuça e odiava a Mônica com todo meu ser) e roubou meus primeiros namorados. Namorados sim, pois eram dois. Gêmeos. Nunca soube quem era quem nesse triângulo amoroso. Bem, não que fosse uma suruba, era amor real. Eu os amava aos dois por igual e construímos nossa relação pecinha por pecinha de LEGO. Às vezes eles também roubavam meu lanche, mas o verdadeiro amor perdoa os vícios. Até que ela apareceu, grandona, assanhadíssima, oferecendo exibir as enormes calcinhas de borboletas para quem quisesse ver. Eu sabia jogar futebol. Mas não adiantou, eles preferiram a lingerie de insetos (haviam joaninhas também, suponho que era algo muito estimulante para os meninos dessa idade). Não contente com ser a causante do meu primeiro abandono, fez de tudo para destruir-me publicamente, tirando o resto de dignidade que ainda tinha frente à única pessoa que (por obrigação, claro) reparava na minha existência, Dona Clotilde (a quem me neguei enfaticamente em chamar de Tia; deus me livre ter algum parentesco com ela). O fato ocorreu durante uma aula na qual Dona Clotilde pediu para nós fazermos um desenho. Orgulhosa, desenhei um caprichado homem de chapéu. Foi então que mal-intencionadamente, a Paulinha pediu para ver meu desenho e em milésimos de segundos ela manchou minha reputação e minha moral para sempre. Armada com um lápis criminal ela desenhou um pinto gigante no meio das pernas do meu homenzinho sorridente. Um pinto verde (combinava com o chapéu) muito bem feito, com uma cabeça enorme e testículos perfeitos. Eu ainda não sabia muito sobre pintos, mas o reconheci imediatamente e, desesperada, tentei apagá-lo com a borracha, com guspe, com o cotovelo, tentei engoli-lo, enquanto Dona Clotilde se aproximava perigosa e rapidamente pra corrigir a “lição”. Obviamente não consegui. Ela, que pelo visto também não vira muitos pintos na sua vida, horrorizada, ficou sem palavras. Eu que nunca usei muitas palavras mesmo, só fiquei em um lamentoso silêncio, mais lamentoso que o usual. E depois disso, dona Clotilde que sempre me achara bastante estranha, começou a me olhar com medo, como quem olha um futuro serial killer. A obra violentada em questão, titulada “Homem contente com chapéu verde” virou “Homem contente com pinto verde”. Li há alguns anos atrás que haviam inaugurado um museu de arte obscena. Quem sabe aceitem uma doação. Aposto que seria a primeira obra pornográfica feita por uma criança de cinco anos (a Paulinha, é claro). Os pintos que retrataria mais tarde nunca foram de homens contentes.
posted by Dedê Ranieri @ 10:48 PM
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