A primeira vez que devorei Luciano fazia uma tarde de sol. De repente caiu uma chuva grossa, dessas que doem na pele e não vimos o arco-íris porque a cortina da janela da sala estava fechada. Naquela época Luciano era só um menino franzino mas carregava na pélvis uma força motriz que me deixava os músculos doloridos e a virilha dormente. Muito tempo se passou desde a tarde do arco-íris e a noite em que ele viu passar um cometa no céu da minha boca. Nessa época eu morava em Belo Horizonte, trabalhava numa livraria e alimentava o sonho de ter a minha própria casa de chá-livraria-e-locadora. Eu estava agachada, atendendo um rapaz argentino quando senti que a loja estava tomada de um cheiro quente e levemente adocicado. Fechei os olhos e levantei-me suavemente, sem saber ao certo se queria ou não vê-lo do outro lado do balcão. Um par de olhos verdes, ancorados em grossas sobrancelhas e protegidos por lentes de resina provocou um buraco negro no meu peito e todo meu ar faltou. Meu corpo encolheu e meu esqueleto delgado era a única coisa concreta na qual eu podia me apoiar. O mundo todo se dissolveu, exceto o homem a minha frente e o volume 4 das obras completas do Borges que estava na minha mão. O rapaz argentino sussurrou palavras incompreensíveis e girou nos calcanhares em direção à porta que segundos depois fechou-se num estrondo. Nesse instante o telefone tocou e o homem de olhos verdes começou a esvaecer até que sumiu, por inteiro, enquanto eu repetia numa espécie de dialeto, o nome da loja para alguém do outro lado da linha. Quando abri os olhos, Luciano era um único e largo sorriso. Nunca sabia ao certo o que se passava comigo durante os intermináveis segundos que ficávamos nos olhando, sem dizer uma única palavra. Somente depois que ele sorria, eu me lembrava que era eu e não ele, a esfinge. E retomava o controle da situação. Ele estava ali para me convidar para um café e como eu sabia que ele adorava croissants, deixei a mesa posta quando saí de casa e foi depois que ele comeu o último pedaço que eu comecei a devorá-lo de novo. Meu menino era fotógrafo e tinha os olhos mais sensíveis que eu já conheci. Foi por isso que ele viu o cometa, mesmo comigo tentando escondê-lo com miolo de pão e leite desnatado. Mais tarde ele me diria que seria lindo se eu tivesse deixado que ele visse também a Pampulha que refletia na minha língua. Cada vez que dormíamos juntos um leve tremor percorria a casa, a rua, o bairro e um perfume seco, de madeira, penetrava nos narinas de BH. Luciano abria meus braços e pernas e se enroscava em meu corpo como uma planta rasteira e nós podíamos permanecer assim durante horas a fio. E eu permitia tudo. Nunca lhe neguei um único suspiro ou uma gota de suor. Cada fibra do meu corpo pertencia aos seus desejos. Pelo menos, até o momento em que eu sentia fome. Porque daí em diante, era eu quem controlava a situação. Cada vez que eu o devorava, escolhia uma parte do seu corpo. Quando ele saiu do meu apartamento, estava sem a outra orelha. Ele havia deixado seu cabelo crescer para disfarçar a falta da primeira. Eu fiquei com pena e não quis retirar uma parte do corpo que lhe causasse algum transtorno. Por isso escolhi a orelha irmã. Vivemos assim durante meses. Ele entrava na loja e eu sentia seu cheiro de incenso. Os clientes saíam e nós em seguida. Íamos a algum lugar para comer e mais tarde eu o devorava no meu apartamento. Depois que sorvi-lhe as pernas ele morou duas semanas comigo. Nunca tive coragem de devorar seus olhos. Meu menino tinha os olhos mais sensíveis que já conheci. Guardei-os em globos de vidro e fiz dois pesos de papel. E quando sinto saudades dele, abro a boca e deixo que os glóbulos verdes viagem seguros no cometa que passa no céu da minha boca.